Este é o piquenique de sábado!
O conteúdo a seguir é como um piquenique — breve, leve, variado, surpreendente e autêntico.
Ao longo da semana, sempre acontecem pequenas coisas curiosas como encontros que conduzem a epifanias. E ler artigos, livros ou ouvir podcasts resultam em reflexões breves. E é isso que pretendo "servir" para você aos sábados.
Fique bem,
Juliano
PS. Se gostar da experiência, encaminhe para pessoas queridas. E considere uma assinatura paga: são R$ 8 por mês por um conteúdo exclusivo, que não se encontra em outro lugar porque brota naturalmente desta cabeça curiosa que, há 54 anos, insiste em perguntar o porquê das coisas — mesmo parecendo estúpido ao fazê-lo.
“Vivi uma boa vida, estou pronta para ir”
Minha tia-madrinha passou mal outro dia. Eu tinha acabado de chegar para uma visita. Ela estava de pé, pediu ajuda para sentar, em seguida nós fomos ao posto de saúde mais próximo. Felizmente, estava vazio, ela foi atendida rapidamente. A pressão dela estava baixa, ela se tranquilizou: tinha um diagnóstico sobre o que aconteceu e uma receita a seguir.
Voltamos para casa e, em algum momento, ela comentou como, depois que chegou aos 70 anos, a expectativa da morte se tornou uma presença constante. Não de uma maneira pesada, depressiva. Está no plano de fundo do pensamento como uma ruptura que pode acontecer inesperadamente. E em momentos de incerteza, ela se pergunta: "Será que é agora que eu vou?"
Sentada em sua cadeira, enquanto sentia o afeito da queda de pressão e nevegava pelas sensações corporais que isso provocava, minha tia pensou que poderia estar se aproximando do fim. E, de todas as reações possíveis, ela fez algo intimamente. Disse a si mesma: “Vivi uma boa vida. Vivi bem, fiz o que eu queria. Estou pronta.”
Ouvir ela relatar isso me acordou um pouco para o desafio de ter coragem para viver enquanto podemos. A vida plena é uma forma de estar preparado para morrer.
“Tudo bem, ele é italiano”
Profissionais da saúde que atendem em casa têm a chance de ver o que geralmente está fora do campo de visão de quem observa de fora. Um amigo, filho de uma fisioterapeuta, contou que um dos pacientes dela a morde quando está incomodado — pela dor e desconforto do exercício.
É um adulto normal, sem qualquer diagnóstico de problema mental. Segundo o meu amigo, a família dessa casa é "bem italiana", expressa fisicamente suas emoções e, supostamente por isso, esse senhor considera morder a fisioterapeuta uma maneira aceitável de reagir ao tratamento que está recebendo.
E Deus fez a limonada
Quando estava criando o mundo, Deus imaginou as coisas como elas deveriam ser. Mas a imperfeição da humanidade, as limitações da vida e o espírito do capital — com sua busca por baratear processos — nos deixam com versões quase irreconhecíveis do que foi o desejo original de Deus.
A limonada, por exemplo, foi concebida para ser feita apenas de uma maneira — e isso é autoevidente, embora a receita verdadeira seja praticamente desconhecida. Aquilo que merece ser chamado de limonada resulta do seguinte processo, que deve ser seguido passo a passo conforme as instruções a seguir:
Preencha um copo de 700 ml com gelo em cubos até a borda.
Esprema dois limões tipo galego (aquele de casca e polpa laranja viva) diretamente sobre o gelo, para que o suco escorra pela superfície da água congelada.
Complete o copo com garapa de cana.
Procure um lugar tranquilo para que sua atenção possa explorar todas as nuances desse jogo simples de sabores e temperaturas. E perceba o eco eterno do big bang emergir da luta entre o azedo e o doce, o frio e o calor.
Frase da semana
“Mas é assim mesmo, desde que o mundo é mundo. Eu sou otimista tóxico, vejo o lado bom. Antes de ficar tudo péssimo, eu já não estarei aqui — ou Jesus volta.”
— Moriael Paiva, primeiro assinante pago deste canal.
Lula e o digital
O Estadão noticiou na semana passada que o presidente Lula cobrou da esquerda uma “revolução na rede digital”. Afinal, é sabido que as redes sociais são um campo dominado pela direita e pela extrema direita.
Não sei o quanto podemos esperar de um homem de 79 anos que, nesse caso, lidere pelo exemplo — mas seria bom. Em vez de se alfabetizar digitalmente, Lula leva a tiracolo, para todos os lugares do mundo, Ricardo Stuckert, um fotógrafo premiado.
Terceiriza aquilo que o resto do país resolve com o próprio smartphone e uma conta no Instagram. Isso não ajuda, presidente.
Amor e traição
Traição é uma palavra meio amaldiçoada. No campo do romance e também da política, trair é ferir alguém justamente por conhecer suas vulnerabilidades, aproveitando-se da confiança e da intimidade que essa pessoa depositou em você. Júlio César foi traído pelo Senado romano. Judas traiu Jesus. O marido trai a esposa — ou o contrário — ao estabelecer um relacionamento paralelo.
Mas há uma outra forma de traição que se aplica especialmente aos relacionamentos: a traição de si mesmo. É uma versão mais tímida e menos examinada desse tipo de atitude e, podemos argumentar, uma com consequências tão ruins quanto sua versão mais popular.
Refiro-me à traição de continuar em relacionamentos quando não se tem certeza se eles estão vivos. Permanecer por medo de causar sofrimento ao outro. É a traição de quem se resigna, perde o interesse verdadeiro pela outra pessoa — ou pelo menos o contato com esse sentimento — e se abstém de mudar, mesmo quando intui que a mudança já aconteceu.
Porque, sem a vitalidade do afeto, quando a relação passa a se alimentar apenas de regras e obrigações, o outro já está sendo vítima. A pergunta a ser feita àquele que quer manter tudo como está é: “Você deseja que eu continue neste relacionamento só para evitar que você sofra - o que já sabe estar sofrendo?”
É injusto e desumano sufocar, dentro do casal, a força de vida, curiosidade, alegria e inteligência que constitui o ser. Isso conduz a doenças no corpo e a estados mentais ruins, que afetam tanto a própria pessoa quanto os que estão por perto. (Lembro do relato de uma mulher madura que se incomodou ao ver um casal se beijando apaixonadamente no ônibus — e logo reconheceu que o que sentia era inveja. Se repreendeu ao admitir essa mesquinharia para si mesma. "Não quero ser essa pessoa que defende os bons costumes.")
Para conhecer mais sobre essa experiência, um caminho é ler Fun Home – Uma tragicomédia em família, da quadrinista premiada dos EUA, Alison Bechdel, publicado no Brasil pela editora Todavia. Sem entregar muito da história: o pai da família é gay e passa a vida no armário.
A antropologia do autismo
Autismo não é binário: existe um espectro. Há autistas que aprendem — às vezes a custo de muito esforço — a navegar por situações em que é preciso “ler” as pessoas e as intenções subjacentes ao que se diz ou ao que se faz. Em geral, têm dificuldades para detectar ironia e podem não ter paciência para o que se chama de “conversa fiada” ou small talk, um artifício social importante em alguns contextos, como fazer amigos ou encontrar um romance.
Hoje se usa o termo “mascarar” para descrever a atitude de autistas que criam personagens para imitar pessoas “normais”. É um processo difícil e solitário, baseado em tentativa e erro. O autista observa como os outros reagem e passa a imitá-los.
O New York Times publicou na semana passada uma reportagem sobre um curso experimental da Universidade da Califórnia voltado a pessoas dentro do espectro autista que querem aprender a encontrar parceiros românticos. Ao escutar o podcast relacionado à matéria, registrei a fala de uma das participantes. Em geral, quem descobre que é autista desenvolve um sentimento negativo em relação ao “masking”, esse esforço de criar personas para se encaixar socialmente. Mas essa entrevistada defendeu o mascaramento como uma habilidade necessária para alcançar uma vida emocional mais plena.
Outra coisa que me chamou a atenção: a personagem da reportagem, entrevistada principal, é uma jovem de 24 anos que nunca namorou. Ela havia recém terminado a graduação e — veja que interessante — formou-se em antropologia.
Isso me lembrou um comentário do meu orientador, o antropólogo Daniel Miller, sobre o que leva algumas pessoas a estudar antropologia. Segundo ele, muitas vezes são pessoas introspectivas e radicalmente tímidas que escolhem essa disciplina por ser a maneira mais científica e profunda de entender quem são esses alienígenas chamados seres humanos.
Seria um ótimo tema de pesquisa testar essa hipótese.